Carro de som, quando não anuncia desgraça, anuncia pamonha. Mas hoje fui levantar da cama e meus ouvidos foram invadidos com aquela voz de quem anuncia que o circo chegou na cidade, dizendo "Não percam, nessa terça-feira, Palestra: como reconhecer um meliante. Técnicas de defesa e fuga! Venham todos, participem". Primeiro eu ri. Depois fiquei pensando seriamente em ir nessa balada aí. Seria muito bom se de cara pudéssemos reconhecer todas as pessoas com potencial a criminoso em nossas vidas. Aquele ali é 171, vou prender ele por estelionato, culpado por obter para si vantagem ilícita (ou seja, foder com a gente e não estar nem aí) em prejuízo alheio (preciso explicar?) induzindo ou mantendo alguém em erro (pois é..) mediante meio fraudulento (chantagem emocional? acomodação sexual? olhos verdes? vai saber..). Aquele outro ali é 157, roubou meu coração com um sorriso. Aquele outro, estuprou meu orgulho. Um conseguiu atirar no meu raciocínio lógico, outro bateu com tudo no carro da minha alegria, me machucou, não prestou socorro e fugiu. Teve também os que traficaram meu juízo, fizeram ele virar pó, me fizeram alucinar e cometer loucuras sem saber o que eu estava fazendo. Por eles, já matei a esperança de ser feliz, já assaltei a confiança dos meus pais, já roubei muitas vezes meu próprio sorriso, já me afundei no erro. Já tive vários tipos de meliante, vários. O foda desses caras é que a função dos desgraçados é, no começo, nunca parecer um meliante. E aí você se joga no mundo deles, vende todo seu luxo pra ficar com aquela simplicidade, esmaga todos seus sonhos pra sonhar junto com uma pessoa, rasga todos os bilhetes de felicidade premiada com um playboy pra ficar, sim, pra ficar a vida toda com um meliante. E depois se pergunta: pra que tudo isso? por que eu fiz tanto? O que eu ganhei em troca? Nada. Melhor ainda, ganhei muito. Ganhei muito pé na bunda, ganhei muita ladainha de amiga chata falando "mude de rumo, esqueça ele, procure outro, vê se enxerga!", ganhei enxaquecas nervosas, ganhei uma caixa d'água de choros, ganhei sogras chatas, ganhei o ódio de umas 78 piranhas, ganhei experiência. Essa última aí foi a que me salvou. A tal da experiência. Depois de ver tanto crime em volta de mim você aprende alguma coisa com a vida. Com ela, eu vi que não adianta bancar a xerifa e querer prender todo mundo na prisão do amor. Meliantes fogem. Meliantes armam um jeito de escapar e não tem algema que dê conta. Não gostam de viver preso, não gostam de honrar fidelidade a nada e nem a ninguém, não gostam de fazer ninguém feliz, só conseguem alimentar o próprio ego e ver envolta do próprio umbigo. E só. E o fim da história sou sempre eu anunciando em todos os postes da cidade "Procura-se por meliante. Recompensa: meu sorriso de volta". Mas não tem que ser sempre assim. Resolvi que pedi demissão da delegacia. Se lugar de bandido é na cadeia, eu que não vou ficar aqui pra alimentar essa amargura. Não tenho estômago pra continuar mais nessa vida, meu sapato de salto fino enrosca se eu andar apé, minha maquiagem borra se eu tomar chuva, e não dá pra usar cinta liga em visitas íntimas. Não tem jeito, sou muito chique pra ser rainha da favela. Não tenho cara pra usar corrente de ouro presa no pescoço. Prefiro meus diamantes. Soltos, livres e bonitos. Porque realmente acredito agora que deva ser assim. Cansei de tentar prender todo mundo. Não preciso de técnica de defesa, preciso de alguém que me defende. Não quero saber como fugir, preciso que alguém fuja de tudo e encontre em mim a sua paz. Não preciso de garras, eu preciso de liberdade. Preciso de novos ares, preciso sair desse mofo que é a prisão e ver que lá fora céu tá limpo e o sol tá brilhando. Preciso olhar pra padaria, pra farmácia, pra igreja, pra toda a cidade, não preciso só ficar com o cinza que é a delegacia. Não sei aonde estará meu diamante. Não sei que cara tem a felicidade. Não sei por onde começar a limpeza dessas tantas cicatrizes que venho acumulando como colecionadora de desgraças. Não sei. Sei que pedi demissão desse cargo de sofrer. Sei que vou embora agora e não vou olhar pra trás. Sei que é cem vezes melhor ter alguém pra fugir de tudo do que precisar fugir de tudo pra ficar com alguém. Papel de xerifa, mandona, delegada, agende carcerária não me cabe mais. Nunca sonhei com isso, mas ando afim de cerquinhas brancas, dois filhinhos, sainha rodada, blusa de florzinha e vida de menininha. Parece chato, mas depois de tanto bang bang, uma paz é sempre bem-vinda.