sexta-feira, 27 de julho de 2012

Uma noite vermelha


- Alô, quem tá falando?
- Quer falar com quem?
- Na minha época você era mais simpática, mocinha. Não lembra de mim?
- Dá pra falar quem é?
- Nossa Juju, não faz assim não. Fiquei mais de uma hora para descobrir seu número novo e você me trata desse jeito? Sei que já faz tempo, mas deu vontade de saber como você estava..

Desliguei o telefone. A única pessoa que poderia chamar uma menina completamente destrambelhada, que dava três passos e conseguia tropeçar em dois, que aprendeu a cruzar as pernas como mocinha bem tarde, que preferia o all star surrado à sandália de salto, que se escondia atrás das pintas sardentas, enfim, a única pessoa que poderia chamar alguém nada meiga de "Juju" era ele. Não tinha dúvidas, era ele. Nunca fui boa em matemática, mas pelas minhas contas fazia mais ou menos quatro anos que não escutava aquela voz. Quatro anos para esquecer um namoro de um pouco mais de oito meses, e assim como não consegui ir em frente com as aulas de piano, é obvio que não consegui esquecer.
Eu tinha acabado de conseguir uma vaga como estagiária em um escritório de publicidade, fazia dezenove anos na semana seguinte, tinha um namorado perfeito que me amava como uma princesa por mais que eu me visse como o patinho ruivo e feio, estava planejando uma viagem de um ano de namoro que em partes, comemorava as raízes do nosso amor, por outro lado, comemorava com espanto que mesmo depois de eu ter contato para ele que eu tinha síndrome do pânico e desejos noturnos estranhos como cereja azul e cerveja duff, mesmo assim, ele não me abandonou. Ele era um cara corajoso e eu, uma esquisita de sorte. Estava tudo maravilhoso. Naquela paz que se sonha em ter aos dezenove. Um dinheirinho na carteira, um amor na cama, uma liberdade surgindo, uma vida começando.
Sai do escritório às seis com ar de quem é responsável, até que me sentia bonitinha e confortável de sapatilha. Subi no ônibus, reparei que minhas espinhas estavam diminuindo de tamanho. Desci do ônibus, um moço me olhou, podia ser que eu estivesse virando mulher. Entrei no prédio dele, me sentia amada. Cheguei, esperava um beijo enorme. Me assustei. A postura séria, o olhar fugindo de mim, as pernas inquietas no sofá, boa coisa não era. Sentei, não disse nada. Ele ficou em silêncio por mais de dez minutos, respirando fundo para falar e desistindo logo em seguida. Quando já estava entretida contando quantas listras tinha na colcha do sofá, ele soltou em disparada, assim, sem vírgulas e nem pausas:  "vou fazer um intercâmbio de um ano na Itália vou estudar e trabalhar está tudo certo já faz seis meses e não tinha coragem pra te contar tentei desistir meu pai não deixou", só parou quando, por fim, me disse: "desculpa, não sei como a gente fica, vamos ficar mais tempo separados do que já ficamos juntos". Já era uma despedida. Derramei quatro lágrimas, levantei, abri a porta. Ele disse: "Espera!". Eu disse: "Um ano? Acho que não vai dar".
Chorei e morri por dias. Não sei se pela tristeza de ter chegado ao fim ou pelo desespero de ninguém me procurar. Quatro horas, quinze dias, um mês se passou. Nenhum telefonema, nenhuma mensagem. Nenhuma visualização recente no até então famoso orkut. Nada. Não comia mais de tristeza, comecei a ter tonturas. Fui comer um cachorro quente, não me caiu bem. Tive desejo de jaca. Estranhei. Aonde foram parar as cerejas azuis? Fim do mês, nem sinal de azul, nem vermelho. Enjôos. Não sabia como contar a meus pais. Eu estava grávida de um namorado metido a italiano? Eu estava grávida de um ex-namorado que eu não sabia mais onde estava, onde morava, o que andava fazendo da vida? Eu estava grávida de alguém que terminou comigo antes de saber que iria ser pai? Eu estava grávida, simples, sem complemento nem companhia, assim, sozinha. Numa cidade cinza, num apartamento pequeno e sujo, sem saber o que fazer. Eu teria que voltar pra minha cidade nos finais se semana, a barriga não apareceria logo, mas e depois? Desespero. Médica. Exame de sangue. Mais enjôos. Silêncio. Mentira. Não posso voltar esse fim de semana, é, muito trabalho, desculpe. Mais médica. Mais um final de semana sozinha. Ódio, não sei do que, não me pergunte. Da minha vida que estava uma droga, de uma vida nova que eu não queria ou da vida amarga que o levou para longe? Não sei. Ódio.
Sábado a noite, não existia mais balada, o filme acabou, fui levantar do sofá. Dor, dor, dor. Sangue. Desespero. Ligar pra médica. Como assim ela está de férias? O que eu faço agora? Pronto socorro? Táxi. Velho babaca preocupado com a mancha de sangue no acento do carro e não com a moça ensanguentada. Três meses e meio de gestação. Em menos de três horas, a notícia: aborto espontâneo. Tristeza. Quem disse que eu não queria esse bebê? Eu queria sim. Raiva. Dor. Choro. Angústia. Não posso ligar pra ninguém. "Como assim você teve um aborto? Nem sabia que você estava grávida, minha filha". Sofrer sozinha. Me reconstruir, aos trancos. Dor, a lembrança, o pesadelo daquela noite vermelha. Não conseguia esquecer.
Passei por tudo isso, completamente sozinha. Em menos de cinco meses tudo aconteceu: eu era imensamente feliz, perdi um amor, ganhei um bebê, perdi um bebê, perdi o rumo, perdi o riso. Envelheci cinco anos em cinco meses. Olheiras. Expressão triste. Nunca mais ser feliz como antes. A cada riso que sem querer soltava eu imaginava como seria o riso do meu bebê. A cada criança que via brincando na rua, um balde de choro. Com quantos anos ela estaria? Com quem ela iria se parecer? Como posso sorrir, se minha felicidade foi embora antes mesmo de eu a ter conhecido? Arrependimento. Aprender a conviver com isso. Sobreviver apenas, viver, assim: leve e tranquila? Nunca mais.
Quatro anos depois, o telefone toca. Na mesma hora, o mundo acaba. Atender e falar "oi, quanto tempo, como você está? Quase fui mãe de um filho seu enquanto você estava se divertindo entre uma macarronada e outra." ou então "não sei se sofri mais por te perder ou por perder a família que quase tivemos."? Preferi desligar. Não deu certo trocar de número. Trocar o cabelo, trocar de casa, de emprego, de cidade. Não adiantou. Troquei tudo. Tentei me recompor, me refazer, me reciclar. Não deu certo. O pesadelo ainda vivia em mim. E então, depois de quatro anos, o telefone toca. Entre mágoas e soluços, pensei em ligar de volta e despejar toda essa lama na cara dele. Seria culpa dele? Dúvida. Incerteza. A visão da carinha dela. Seria uma menina, eu sei. Ela brincaria na barba dele. Seria bonitinha, mesmo que fosse ruiva como eu. Tristeza. A culpa da vida que poderia ter sido e não foi é de quem? Não sei. Assim como também não sabia quem culpar e por não aguentar carregar tudo isso sozinha, ele foi o premiado. Ganhou o prêmio de se ausentar da dor. Ganhou o prêmio da ignorância. Muitas vezes o "não saber" é um presente. Ele deve estar perdido entre perguntas sem respostas. Quantas vezes a gente tenta entender a vida e não consegue? Sorte a dele. Por ser tão sortudo, eu o acuso. Por causa dele toda essa dor aconteceu. Ele não sabe, mas seríamos felizes, nós três. Mas nunca mais poderemos ser três. Então, desliguei o telefone. Ele nunca entenderá. Melhor assim. Daria tudo para estar no lugar dele e não ter que lembrar todo dia da maldade da vida: te leva aonde você não espera, te transforma no que você não imagina e te faz sentir o que você não queria. Escorreu entre lágrimas e sangue a alegria de Juju.