- Alô, quem tá falando?
- Quer falar com quem?
- Na minha época você era mais simpática, mocinha. Não
lembra de mim?
- Dá pra falar quem é?
- Nossa Juju, não faz assim não. Fiquei mais de uma hora
para descobrir seu número novo e você me trata desse jeito? Sei que já faz
tempo, mas deu vontade de saber como você estava..
Desliguei o telefone. A única pessoa que poderia chamar uma
menina completamente destrambelhada, que dava três passos e conseguia tropeçar
em dois, que aprendeu a cruzar as pernas como mocinha bem tarde, que preferia o
all star surrado à sandália de salto, que se escondia atrás das pintas
sardentas, enfim, a única pessoa que poderia chamar alguém nada meiga de
"Juju" era ele. Não tinha dúvidas, era ele. Nunca fui boa em
matemática, mas pelas minhas contas fazia mais ou menos quatro anos que não
escutava aquela voz. Quatro anos para esquecer um namoro de um pouco mais de
oito meses, e assim como não consegui ir em frente com as aulas de piano, é
obvio que não consegui esquecer.
Eu tinha acabado de conseguir uma vaga como estagiária em um
escritório de publicidade, fazia dezenove anos na semana seguinte, tinha um
namorado perfeito que me amava como uma princesa por mais que eu me visse como
o patinho ruivo e feio, estava planejando uma viagem de um ano de namoro que em
partes, comemorava as raízes do nosso amor, por outro lado, comemorava com
espanto que mesmo depois de eu ter contato para ele que eu tinha síndrome do
pânico e desejos noturnos estranhos como cereja azul e cerveja duff, mesmo
assim, ele não me abandonou. Ele era um cara corajoso e eu, uma esquisita de
sorte. Estava tudo maravilhoso. Naquela paz que se sonha em ter aos dezenove.
Um dinheirinho na carteira, um amor na cama, uma liberdade surgindo, uma vida
começando.
Sai do escritório às seis com ar de quem é responsável, até
que me sentia bonitinha e confortável de sapatilha. Subi no ônibus, reparei que
minhas espinhas estavam diminuindo de tamanho. Desci do ônibus, um moço me
olhou, podia ser que eu estivesse virando mulher. Entrei no prédio dele, me
sentia amada. Cheguei, esperava um beijo enorme. Me assustei. A postura séria,
o olhar fugindo de mim, as pernas inquietas no sofá, boa coisa não era. Sentei,
não disse nada. Ele ficou em silêncio por mais de dez minutos, respirando fundo
para falar e desistindo logo em seguida. Quando já estava entretida contando
quantas listras tinha na colcha do sofá, ele soltou em disparada, assim, sem
vírgulas e nem pausas: "vou fazer
um intercâmbio de um ano na Itália vou estudar e trabalhar está tudo certo já
faz seis meses e não tinha coragem pra te contar tentei desistir meu pai não
deixou", só parou quando, por fim, me disse: "desculpa, não sei como
a gente fica, vamos ficar mais tempo separados do que já ficamos juntos".
Já era uma despedida. Derramei quatro lágrimas, levantei, abri a porta. Ele
disse: "Espera!". Eu disse: "Um ano? Acho que não vai dar".
Chorei e morri por dias. Não sei se pela tristeza de ter
chegado ao fim ou pelo desespero de ninguém me procurar. Quatro horas, quinze
dias, um mês se passou. Nenhum telefonema, nenhuma mensagem. Nenhuma
visualização recente no até então famoso orkut. Nada. Não comia mais de tristeza,
comecei a ter tonturas. Fui comer um cachorro quente, não me caiu bem. Tive
desejo de jaca. Estranhei. Aonde foram parar as cerejas azuis? Fim do mês, nem
sinal de azul, nem vermelho. Enjôos. Não sabia como contar a meus pais. Eu
estava grávida de um namorado metido a italiano? Eu estava grávida de um
ex-namorado que eu não sabia mais onde estava, onde morava, o que andava
fazendo da vida? Eu estava grávida de alguém que terminou comigo antes de saber
que iria ser pai? Eu estava grávida, simples, sem complemento nem companhia,
assim, sozinha. Numa cidade cinza, num apartamento pequeno e sujo, sem saber o
que fazer. Eu teria que voltar pra minha cidade nos finais se semana, a barriga
não apareceria logo, mas e depois? Desespero. Médica. Exame de sangue. Mais
enjôos. Silêncio. Mentira. Não posso voltar esse fim de semana, é, muito
trabalho, desculpe. Mais médica. Mais um final de semana sozinha. Ódio, não sei
do que, não me pergunte. Da minha vida que estava uma droga, de uma vida nova
que eu não queria ou da vida amarga que o levou para longe? Não sei. Ódio.
Sábado a noite, não existia mais balada, o filme acabou, fui
levantar do sofá. Dor, dor, dor. Sangue. Desespero. Ligar pra médica. Como
assim ela está de férias? O que eu faço agora? Pronto socorro? Táxi. Velho
babaca preocupado com a mancha de sangue no acento do carro e não com a moça
ensanguentada. Três meses e meio de gestação. Em menos de três horas, a
notícia: aborto espontâneo. Tristeza. Quem disse que eu não queria esse bebê?
Eu queria sim. Raiva. Dor. Choro. Angústia. Não posso ligar pra ninguém.
"Como assim você teve um aborto? Nem sabia que você estava grávida, minha
filha". Sofrer sozinha. Me reconstruir, aos trancos. Dor, a lembrança, o
pesadelo daquela noite vermelha. Não conseguia esquecer.
Passei por tudo isso, completamente sozinha. Em menos de
cinco meses tudo aconteceu: eu era imensamente feliz, perdi um amor, ganhei um
bebê, perdi um bebê, perdi o rumo, perdi o riso. Envelheci cinco anos em cinco
meses. Olheiras. Expressão triste. Nunca mais ser feliz como antes. A cada riso
que sem querer soltava eu imaginava como seria o riso do meu bebê. A cada
criança que via brincando na rua, um balde de choro. Com quantos anos ela
estaria? Com quem ela iria se parecer? Como posso sorrir, se minha felicidade
foi embora antes mesmo de eu a ter conhecido? Arrependimento. Aprender a
conviver com isso. Sobreviver apenas, viver, assim: leve e tranquila? Nunca
mais.
Quatro anos depois, o telefone toca. Na mesma hora, o mundo
acaba. Atender e falar "oi, quanto tempo, como você está? Quase fui mãe de
um filho seu enquanto você estava se divertindo entre uma macarronada e
outra." ou então "não sei se sofri mais por te perder ou por perder a
família que quase tivemos."? Preferi desligar. Não deu certo trocar de
número. Trocar o cabelo, trocar de casa, de emprego, de cidade. Não adiantou.
Troquei tudo. Tentei me recompor, me refazer, me reciclar. Não deu certo. O
pesadelo ainda vivia em mim. E então, depois de quatro anos, o telefone toca.
Entre mágoas e soluços, pensei em ligar de volta e despejar toda essa lama na
cara dele. Seria culpa dele? Dúvida. Incerteza. A visão da carinha dela. Seria
uma menina, eu sei. Ela brincaria na barba dele. Seria bonitinha, mesmo que
fosse ruiva como eu. Tristeza. A culpa da vida que poderia ter sido e não foi é
de quem? Não sei. Assim como também não sabia quem culpar e por não aguentar
carregar tudo isso sozinha, ele foi o premiado. Ganhou o prêmio de se ausentar
da dor. Ganhou o prêmio da ignorância. Muitas vezes o "não saber" é
um presente. Ele deve estar perdido entre perguntas sem respostas. Quantas
vezes a gente tenta entender a vida e não consegue? Sorte a dele. Por ser tão
sortudo, eu o acuso. Por causa dele toda essa dor aconteceu. Ele não sabe, mas
seríamos felizes, nós três. Mas nunca mais poderemos ser três. Então, desliguei
o telefone. Ele nunca entenderá. Melhor assim. Daria tudo para estar no lugar
dele e não ter que lembrar todo dia da maldade da vida: te leva aonde você não
espera, te transforma no que você não imagina e te faz sentir o que você não
queria. Escorreu entre lágrimas e sangue a alegria de Juju.