quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Vício



Não tenho motivos pra desconfiar, mas ele está no banho, é uma boa hora pra checar seu celular. Confio nele, mas ele foi à padaria, poderia fuçar suas gavetas. Ele deixou o facebook aberto, é errado, mas eu poderia ler de cabo a rabo todas as suas conversas. Ele está conversando com um amigo, eu poderia ficar tranquila, mas quero ouvir a conversa. É como um vício. A vontade está ali, parada, quieta. Acho sempre que estou vivendo bem, e de repente, ele me consome. Não enxergo a realidade e alucino a fantasia. Vivo em um mundo que não condiz com minhas expectativas e com os meus discursos de "eu sou assim". Fujo de mim, resgato tudo de controlador e autodestrutivo que existe por aqui. Vou até o fim e descubro tudo o que não quero, ou eu não procuro nada e imagino cenas tão dramáticas quanto um filme mudo, onde você não ouve nada, mas cada ação parece dar um indicio do que só você pode interpretar, deixando livre as piores formas possíveis de se imaginar uma cena trágica.
Ele é cruel, me faz sentir otária quando parada, obsessiva quando em movimento, triste quando sozinha, aflita quando longe. Sigo cada passo como se ele tivesse obrigação, por nascença ou por destino, de me avisar sobre cada movimento. Ele distancia amizades, acusa inocências, distorce cordialidade. Ele vê, quase sempre, coisas sem sentido. Por ele, já chorei baixinho, já gritei sufocando minha dor entre espumas do travesseiro, já tive medo, já briguei, já calei, já provei a minha certeza, já provaram minha loucura. Já quis mudar coisas que estão paralisadas na estante do passado, já quis apagar toda a história vivida, já pedi que não existisse mais ninguém no mundo que tivesse amado como eu amo, que tivesse desejado como eu desejo, que já tivesse gostado tanto de um sorriso como eu gosto. Já implorei para que ninguém descubra essa fonte de felicidade que brota em mim. Já me cobrei "não demonstra, não demonstra, se você alarmar, vem alguém te ladrar!". Já quis matar, já quis bater, já quis sumir. Certa vez, pensei que manter uma pessoa dormindo vinte e quatro horas por dia era um bom modo de não fazer ninguém se aproximar. Já tive raiva de toda aproximação a mais de 100 metros. Já imaginei quantas aproximações não pude evitar. Já enlouqueci de não saber o que se faz quando minha presença não está presente. Já quis ser uma mosca. Já quis ser invisível. Não fui, sou transparente, e me escorre toda dor que sinto ao sentir o que não quero.
Aborreço por tanta insegurança que transborda. Estremeço por confessar que talvez isso seja mesmo, uma doença, sem cura ou desculpa: o ciúme me corroe. E o desespero bate em uma noite quente, como se minha carne estivesse mesmo em brasa. Queimando por um ódio sem sentido, de alguém que não existe, por roubar o que não é seu. Porque na verdade, não existe nada meu. Só é meu o que guardo em mim. E dentre tantas memórias bonitas e especiais, prefiro guardar a dúvida. Tento entender que cada um é dono de si e morrer de ciúme não vai fazer com que ninguém viva só para mim. Tento, por cinco segundos, depois mando esse discurso psicológico e autossuficiente pra puta-que-o-pariu. E então, alucino: por que o celular não atendeu? Por que ela te falou oi? Por que você chegou atrasado? Da onde você a conhece? Você já a beijou? Você ainda a ama? O medo que tirem seu chão faz você cavar sua própria cova.
Ciúme é suicídio, te mata aos poucos, te enterra com suas paranoias vivas e faz você perder o ar e as esperanças lentamente, até morrer, com a certeza de que sempre será infeliz. Mata seu amor-próprio, faz você existir primeiro pelo outro, depois para você. Te faz vingador, se me traírem eu também traio. Te faz depressivo, se ele me deixarem eu desmorono. Te faz violento, se chegar perto eu esgano. Só se deixa ser pelo impulso do desespero e pela angústia do desamparo. Não se enxerga o amor, não se enxerga a paixão. Na escuridão da desconfiança, as lentes de contato conseguem ver só mentiras, ilusões, delírios. Nessa busca de gato e rato, de acusações sem provas, de vítima e crápula, quem sofre mais? Quem lança aos quatro ventos o veneno ou quem recebe todo esse mal para si? O amor supera mesmo tudo? Ciúme é como erva daninha, uma vez plantado, acaba com qualquer tipo de relação. Mesmo aquelas que estavam juradas em ser para sempre um amor eterno. Não conseguimos parar no primeiro trago, é preciso fumar um maço inteiro de rancor. Não conseguimos beber uma quantidade sociável, é preciso encher a cara de hipóteses. O ciúme é meu vício. Estava limpa há três meses. Hoje, ele me rondou. Eu cedi. Sei que será uma luta diária. Mas deveria saber que entre o amor e o vício, vence, quem eu alimentar.

2 comentários:

  1. peguei a imagem de sua publicação para usar no meu blog, se há algum problema nisso me comunique, eu retiro em seguida.
    obrigado,

    douglas louredo

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  2. Marília, adorei seus textos! Eles prendem o leitor de uma forma deliciosa. Espero que você volte à postar em breve! Um beijo =)

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